Hoje assinala-se o Dia Internacional da  Tolerância Zero às Mutilações Genitais Femininas.
Embora não sejam conhecidos números concretos, sabemos que a MGF teima em persistir. "Por  tradição, razões estéticas, ou deleite dos maridos, ainda se cortam os  genitais a meninas e mulheres." 
Por isso, é muito importante continuarmos a partilhar a informação que vai surgindo. Mais informação pode levar a mais prevenção e mais intervenção. Destaco duas entrevistas: a entrevista de Célia Rosa a Alice Frade e a entrevista da Amnistia Internacional Portugal a Sofia Branco.
 
A entrevista de Célia Rosa a Alice Frade  (Notícias Magazine, 5 de Fevereiro de 2012) encontrei-a no facebook e, por essa razão, deixo-a aqui na integra.
Antes, quero apenas salientar que Alice Frade é antropóloga e, actualmente, é responsável do Departamento de Advocay e Cooperação para o  Desenvolvimento da Associação para o Planeamento da Família (APF).
(Célia Rosa) Na  véspera do Dia Internacional da Tolerância Zero às Mutilações Genitais  Femininas, que se assinala amanhã, 6 de Fevereiro, o que é os  portugueses precisam de saber?
(Alice Frade) Todos devem saber que no  país existem mulheres de várias idades, incluindo crianças, que sofreram  mutilação genital feminina (MGF) e que muitas delas têm nacionalidade  portuguesa. Por esta razão é fundamental que os profissionais das áreas  da saúde, educação e intervenção social tenham conhecimentos específicos  sobre este tipo de crime (artigo 144 do Código Penal) e saibam o que  fazer para prevenir, intervir e sinalizar. Não podemos continuar a ter  médicos e enfermeiros que observam uma mulher com mutilação e pensam que  ela tem uma malformação congénita ou que teve um parto mal feito.
Para  que os leitores não tenham dúvidas, quando falamos em MGF estamos a  dizer que há crianças, raparigas e mulheres a quem cortam o clítoris, os  pequenos e os grandes lábios. Muitas também são sujeitas a um  estreitamento da vagina e a outras práticas que alteram os seus  genitais, todas dolorosas, traumatizantes, perigosas e atentatórias dos  direitos humanos. É isto?  
Sim, a OMS identifica quatro  tipos de MGF que contemplam outras lesões, além dos cortes totais ou  parciais do clítoris, pequenos lábios, grandes lábios e do estreitamento  da vagina. Por exemplo, punções, perfurações e escarificações dos  genitais e até o seu alongamento ou cosedura. Não precisa de haver  corte. Qualquer intervenção feita nos genitais de uma menina ou de uma  mulher por razões não médicas é uma mutilação. Está tudo descrito na  Declaração Conjunta para a Eliminação da MGF, um documento que foi  distribuído em Portugal aos políticos, profissionais de saúde e órgãos  de comunicação social e que pode ser consultado na internet por qualquer  pessoa. O alto-comissário para os refugiados, António Guterres, foi um  dos subscritores. Também distribuímos, aqui e na Guiné-Bissau, em  Moçambique e em Angola, o manual de formação para profissionais de  saúde.
Que crenças sustentam a MGF? 
Actualmente,  a MGF já é entendida pela maioria das pessoas como uma prática  violadora dos direitos das meninas e das mulheres. Mas quando é  realizada nas comunidades de origem – países africanos, asiáticos e do  médio oriente – serve para garantir a integração e o reconhecimento  social das mulheres e o seu futuro: casar, ter filhos, cuidar e servir a  família.
Nessas comunidades, as mulheres são excisadas para  garantir que os seus genitais são bonitos (uma dimensão estética); que o  clítoris ou os grandes lábios não tocam na cabeça do bebé no momento do  nascimento (acredita-se que provoca doenças); que são intocáveis até ao  casamento (crê-se que preserva a virgindade e depois a fidelidade);  para aumentar o prazer sexual do marido (mais uma crença), etc. Nalguns  países a única razão é discriminação de género.
É mais uma forma de controlo social das mulheres? 
Sim.  Há práticas tradicionais nefastas que só persistem porque são  realizadas sobre mulheres. A MGF é uma delas, os casamentos forçados, a  troca e venda de noivas são outras. E o que é mais chocante é saber que  alguns países onde estas coisas acontecem recebem apoios importantes da  comunidade internacional para a saúde e educação mas os líderes dos  estados doadores não têm tido a capacidade de trazer estes temas para a  agenda política, o que é fundamental.
Em que idade é que as meninas mutiladas?
Depende,  o mais comum é entre os dez e os 14 anos. Nalguns casos, faz-se logo à  nascença. Sobretudo nos países onde já existe uma lei que proíbe a MGF.  Assim, o crime é mais facilmente encoberto e quanto mais pequena for a  criança menos força tem e menos resiste.
As mulheres que se lembram da sua mutilação genital contam que sofreram horrores. Nós não conseguimos imaginar, pois não?
Claro  que não. Nunca me esquecerei do relato de uma mulher que vive nos  arredores de Lisboa e que me contou como foi a sua mutilação. Primeiro,  passou vários dias amarrada e ajoelhada para aprender a obedecer; depois  foi obrigada a comer deitada, sem olhar nos olhos das pessoas mais  velhas, para aprender a respeitar. Finalmente, um dia, foi agarrada e  imobilizada por várias mulheres que lhe prenderam os pés, as mãos e o  tronco e foi cortada com uma faca (podia ter sido outro objecto  cortante, um vidro ou uma lata). A história desta mulher é uma história  de violação dos direitos mais básicos e ela sabe isso. Ainda assim, por  causa dos factores associados à sua cultura e religião, cada vez que  fala do assunto ela sente que está a atentar contra a suas raízes,  contra as tradições do seu povo.
Como se estivesse a negar a sua identidade? 
Exacto,  e essa é uma das razões porque temos dificuldade em encontrar mulheres  que falem sobre o tema. O medo das represálias é outra. Em Portugal,  algumas mulheres que falaram publicamente da MGF sofreram retaliações da  sua própria comunidade. E não será por acaso que não há nenhuma  associação de mulheres originárias de países onde existe MGF cujo  trabalho central seja as práticas tradicionais nefastas. A APF tenta  trabalhar com as mulheres para que elas possam assumir um papel de  destaque nas associações mas é muito difícil.
No mundo, estima-se que existam entre cem e 140 milhões de raparigas e mulheres com MGF. Um número alarmante?
Assustador.  Quantos Costa Concórdia precisam de afundar para termos a dimensão da  tragédia da MGF? E alguém conhece algum líder tradicional,  primeiro-ministro ou presidente da república que tenha sido julgado  porque no seu país 50 por cento das mulheres são mutiladas? É certo que  muitos países aprovaram legislação proibitiva e desenvolvem trabalho  directo nas comunidades – é o caso da Guiné-Bissau – mas ainda há um  mundo de coisas para fazer até acabarmos com esta prática. E têm de ser  as próprias comunidades a dizer não.
Na Europa  estima-se que 500 mil mulheres tenham sido mutiladas e que 180 mil  raparigas estejam em risco. Portugal também é um país de risco?
Portugal  recebe migrantes de países onde a MGF existe e muitas meninas,  incluindo algumas nascidas no país, estão em risco. Pensa-se que a  maioria será sujeita à intervenção nos países de origem – antes de virem  para Portugal ou durante uma deslocação nas férias, por exemplo à  Guiné-Bissau. Cá, também haverá locais onde se pode fazer.
A MGF envolve grandes riscos para a saúde e pode levar as raparigas e as mulheres aos hospitais.
Pode  provocar a morte. Mas cá, quando há infecções, hemorragias, dores e  outros problemas, parece que as pessoas contornam o sistema. Ouvi um  responsável da embaixada da Guiné-Bissau dizer num programa da RTP –  África que quando a mutilação é feita no país de origem e as  complicações se manifestam no regresso a Portugal, o que a comunidade  fará é recorrer aos profissionais de saúde guineenses que exercem cá.
Os  médicos nunca devem realizar actos de MGF mas há quem defenda que se o  fizerem, em boas condições de higiene, as meninas e as mulheres correm  menos riscos. O que acha disto?
Não podem, todos os  organismos e associações médicas internacionais o proíbem. Mas nalguns  países, no Egipto por exemplo, muitas mulheres são sujeitas a mutilação  praticada por médicos.
Uma coisa é ler ou falar sobre MGF outra é conhecer essa realidade. O que é que já viu e o que sentiu?
Na  Guiné-Bissau, da primeira vez, vi morrer uma menina de 17 anos, e os  seus bebés, devido a um trabalho de parto que se complicou por causa da  mutilação genital. Mais tarde, conheci uma rapariga de 18 anos que tinha  sido banida da família porque tinha uma fístula obstétrica, com odor.  Uma consequência do que lhe tinham feito e não havia meios para a tratar  nem dinheiro para a enviar para o Senegal. Também morreu e deixou um  recém-nascido órfão, de que ninguém quis cuidar. Aquelas duas mulheres  sofreram horrores e nunca se queixaram. As que são mutiladas e não  morrem também não se queixam. É destas sobreviventes que depende a vida  da família e da comunidade – são elas que cultivam, vão buscar água e  lenha, cozinham e lavam, cuidam dos maridos e dos filhos. Perante  mulheres desta grandeza, não faz sentido falar das minhas lágrimas  contidas."

A entrevista da Amnistia Internacional Portugal a Sofia Branco (jornalista da Agência Lusa, especializada neste tema) também a encontrei no facebook. 
O pdf pode ser lido aqui: http://www.amnistia-internacional.pt/files/Entrevista_SofiaBranco.pdf